domingo, 8 de junho de 2014

Garotas de Vidro -Laurie Halse Anderson


   Em uma noite animada de férias de final de ano, sob a luz da lua e na companhia da sua melhor amiga Cassie, tudo o que Lia desejou era poder ser a garota mais magra da escola – não a mais popular, ou muito menos a mais bonita, apenas a mais magra entre elas, somente a mais magra entre todas as jovens de seu colégio. O que pareceu uma promessa boba e infantil virou o mantra dessas garotas, que perdidas em relacionamentos familiares complicados e confusos, encontraram uma na outra, e em suas metas e sonhos utópicos de magreza, o refúgio de uma amizade que aceita, apoia e nunca abandona... pelo menos não até Cassie ser encontrada sozinha e morta em um quarto de motel. A morte da jovem abalou todos ao seu redor ao expor duramente a gravidade de seu antigo estado, fato que chocou seus pais, colocou a prova o verdadeiro nível de amizade dos que estavam ao seu redor e principalmente, aumentou o volume das vozes que surravam no ouvido de Lia: A Cassie pediu ajuda e você não ouviu!

“Nós nos transformamos nas garotas geladas e, quando ela tentou ir embora, eu a puxei de volta para a neve porque estava com medo de ficar sozinha.”

   A história é narrada do ponto de vista de Lia a partir da morte de Cassie, assim mergulhamos na atual vida da protagonista ao mesmo tempo em que, de acordo com suas alterações de humor, vamos desvendando seu passado por meio da menção de algumas de suas memórias, e são com essas lembranças que o mistério da morte da Cassie vai ganhando cara e nome, permitindo que o livro tome um caráter angustiante, doloroso e real em demasia. Delinquência, imprudência, drogas, descaso, solidão, anorexia, bulimia, autoflagelação, palavras que são fáceis de descrevermos separadamente, mas tente juntá-las em uma única palavra, tente imaginar tudo isso preso e enraizado em um coração angustiado e perdido – Que nome você daria a esse monstro? Nesse ponto o que realmente aconteceu com Cassie fica em segundo, pois o que importa é o motivo que levou a jovem a ter esse fim, desfecho que parece rondar também o futuro de Lia e que por isso, obscurece o livro de tal forma que é impossível não se sentir possuído e dominado pela escuridão que domina essas jovens.

“Escute os sussurros que se enrolam na sua cabeça à noite, te chamando de feia e gorda e vaca e biscate e o pior de tudo: “uma decepção”. (...) Olhe no espelho e veja um fantasma. Escute cada batida do seu coração gritar que tudoabsolutamentetudo está errado com você. “Por quê?” é a pergunta errada. Pergunte “Por que não?.”

   Lia conta às calorias de tudo o que come, e a autora não diz isso, demonstra; Lia se olha no espelho e vê uma jovem gorda, feia, estúpida, burra, mas a autora não fala isso, ela escreve e escreve e escreve até que não existam dúvidas do que a jovem vê no espelho; Lia se corta para sentir a dor e a opressão esvair de seu corpo, só que a autora não cita isso, ela conta como se ela já tivesse passado por isso; Lia toca suas costelas e só vê banha; Lia deseja um pedaço de chocolate, um delicioso pedaço de bolo, uma suculenta bocada de pizza, mas ela é forte, ela não precisa disso, ser vazia é ter poder, vencer a fome é ter poder, e sabe como eu sei disso? Porque eu mergulhei na mente de Lia, eu li sobre a sua paranoia, sobre o seu medo, sobre seus erros e sobre a sua doença, e isso tudo porque a autora foi inteligente e talentosa o suficiente para descrever o estado de Lia e não apenas citar sobre ele. Mas aí vocês me perguntam: Tá Pah, mas qual é a diferença? A diferença está em dizer – Ei, sabe aquela blogueira do Rio Grande do Sul que morreu de anorexia? Aquela de vinte e um anos que tinha vários seguidores nas redes sociais! Pois é, tão bonita e magra morreu porque quis, ou dizer – Trágico ver que uma escolha ruim a levou a um estado de doença tão forte, trágico ver uma jovem perder a vida por não ter tido alguém que a ajudasse, que a ouvisse, que a indicasse um caminho para se tratar, trágico ver que ela podia ter tudo, que ela tinha escolha, mas não tinha ninguém para auxiliá-la a seguir outros rumos.

Eu não deveria. Não posso. Não mereço. Sou uma gorda gigante e tenho nojo de mim mesma. Eu já ocupo espaço demais. Sou uma hipócrita feia e malvada. Sou um problema. Sou um lixo. Quero dormir e não acordar, mas não quero morrer. Quero comer como uma pessoa normal, mas preciso ver os meus ossos ou vou me odiar ainda mais...”

   Sentiram a diferença? Nada do que eu já havia lido tornou os distúrbios psicológicos 
(alimentares, fisiológicos e afins) descritos nesse livro tão reais como esses me parecem agora, é como se meus olhos tivessem sido abertos para a dor que aflige quem passa por isso, ou seja, esse não é um livro fácil, leve e calmo. Perdi o sono, fiquei incomodada, me senti conturbada e chorei como uma criança. Minha única ressalva é que existe um aspecto fantasioso presente na trama, algo ligado à forma como Lia vê a realidade ao seu redor que me incomodou, de início me pareceu óbvio tal desvio da realidade, mas no final a autora dá outra explicação para isso fazendo parecer que esse aspecto psicológico não é característico de todos os jovens com anorexia, mas apenas de Lia, o que me pareceu contraditório de certa maneira.
Em todo caso, o livro é incrivelmente sufocante e esclarecedor. Mais uma obra da autora que me surpreendeu e me deu um banho de água fria ao retratar com tanta clareza a realidade de inúmeros jovens espalhados pelo mundo.